segunda-feira, 25 de julho de 2011

Contemplação

O sol esconde-se, timidamente, por entre o recortado das colinas, deixando atrás de si uma sublime mistura de tons cor de fogo. A negro sobressaem as formas irregulares das ramagens dos sobreiros e o vulto de uma casa perdida no meio do monte. Os fios de electricidade estendem-se para o infinito e um ponto brilhante sobressai na paisagem adormecida. Os grilos cantam e envolvem o montado numa melodia serena. O vento sopra levemente, raspa pelas telhas e segue para outras paragens, levando consigo os últimos resquícios do dia. Descobrem-se as sombras que anunciam a noite e tudo adormece num repouso tranquilo, interrompido apenas pelo regougar de uma raposa, pelo piar de um mocho ou pelo latido de um cão. E são estes os sons e os rituais que transformam o montado num pedaço de silêncio.

E esta é a paisagem e que contemplo da minha janela, naqueles momentos em que me apercebo dos momentos fugazes de que é feita a existência de todas as coisas.

L.C., 25 de Julho de 2011

terça-feira, 19 de julho de 2011

Do "Breviário das Almas", de Joaquim Mestre

         Perdidas nas profundezas da memória do alentejano genuíno estão as palavras de Joaquim Mestre, presentes no “Breviário das Almas”. A solidão humana, os rituais, as crendices e a certeza da efemeridade da vida reflectem-se na simplicidade do seu discurso.

            Deliciemo-nos então com as palavras deste escritor:
   “Ouço os meus passos e o vento passa por entre as ramagens das amendoeiras, pelos pastos, a arrastar os cardos pelas ruas. O vento, de vez em quando, aquieta-se e é apenas uma aragem quente, seca, dura.  Ouço o estalar das madeiras de uma porta ou uma janela a bater. O resto é silêncio e pedras e céu. Um silêncio espesso, pesado, como se fosse possível cortá-lo. As pedras estão por todo o lado: nos caminhos, no cercado, nas casas. O céu está parado e baixo. Nem o vento nem o esvoaçar dos pássaros estremecem o azul. Nem as nuvens se mexem. Tudo quieto como uma fotografia.
      Sento-me no poial de uma casa, olho a porta fechada, a madeira puída pelo tempo, as ervas a rebentarem por entre as pedras da soleira da porta. Ervas daninhas, que outras por aqui já não há, e fico a olhar aquele cemitério de pedras, vozes que ressumam das paredes, múrmurios ciciados que apenas existem dentro de mim. Ninguém. Nada. Morreram todos. Só pedras e casas dentro do silêncio. “

In Joaquim Mestre, Breviário das Almas,
Alfragide, Oficina do Livro, 2009, pp. 97-98.


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Paragem involuntária

       Não parei voluntariamente o carro, à sombra de uma árvore, junto a quatro caixotes do lixo, numa avenida citadina. A avenida vai dar ao cemitério, mas eu nem vejo os muros que o rodeiam, para isso teria de percorrer a pé, pelo menos uns cem passos… Não, não parei voluntariamente, foi a máquina que decidiu parar, porque o pedal da embraiagem desapareceu de debaixo dos meus pés. Enquanto espero pela ajuda, fico dentro do carro. Observo os transeuntes que passam na rua, uns mais atarefados, outros menos, outros que caminham calmamente, para cumprir os rituais típicos de um sábado de manhã…

       Avisto um senhor paraplégico que percorre a calçada, depois atravessa a passadeira e continua a sua jornada à velocidade que a engrenagem da cadeira de rodas permite. E fico a admirar, como sempre, todos aqueles que apesar das suas limitações físicas, gozam a independência que lhes é concedida, apesar dos entraves criados pela mentalidade social e pelos obstáculos físicos do pavimento. E escrevo, ainda não sei muito bem sobre o quê, nem sei que título vou dar a este escrito… mas adiante.

       As folhas da árvore ondulam ao sabor do vento e tornam irregular a sua sombra no pavimento alcatroado. Os carros passam, barulhentos nos seus motores, são de todas as cores e feitios, uns de marcas acessíveis ao típico cidadão de classe média baixa e outros apenas acessíveis ao cidadão de classe alta, que adora exibir o seu veículo de alta cilindrada… Mantenho os quatro piscas ligados, para sinalizar a minha paragem involuntária na faixa de rodagem, e estes produzem um som rítmico de tic tac de relógio, tic-tac-tic-tac-tic-tac… Por vezes, os motores desaceleram e ouvem-se travões para permitir a passagem dos peões na passadeira. E agora passa um condutor que vai com tanta pressa que a deslocação do ar faz estremecer o meu Opel imobilizado, por causa de um cabo de embraiagem.
       Vai pela passadeira um homem alucinado, de barba grande, camisola verde, calças de ganga pretas, balbuciando consigo próprio a passo desconcertado.
       Passa uma rapariga jovem de bicicleta, segue o seu caminho calmamente, ao ritmo do seu rítmico pedalar.
       E de repente, nenhum carro a passar, nenhum transeunte, apenas os leves sons das folhas da árvore a ondular ao vento, o cantar dos pássaros, as vozes de três idosos que conversam algures, à sombra de outra árvore, certamente sentados num banco de jardim e, claro, o som compassado dos quatro piscas em simultâneo, para me relembrar que o meu carro está imobilizado na berma de uma faixa de rodagem, à sombra de uma árvore, ao pé de quatro caixotes do lixo, numa avenida citadina, em que por alguns momentos não passou um veículo motorizado.  

L. C., 2 de Julho de 2011