Nos últimos dias descobri um novo escritor, deliciei-me com uma nova leitura, com a descoberta de um outro estilo de escrita e no quanto a criatividade literária continua viva entre os escreventes da língua portuguesa. Refiro-me ao romance de Valter Hugo Mãe, O remorso de baltazar serapião, romance que valeu ao autor o Prémio José Saramago, em 2006. Não é um livro de leitura fácil, nem tão pouco desatenta, devido a dois fatores essenciais: em primeiro lugar devido ao tema tratado, a condição da mulher, numa perspetiva de exploração e submissão perante uma mentalidade machista dominante; e em segundo lugar, devido à especificidade do discurso, que pela ausência de maiúsculas e pela recriação de uma linguagem medieval, obrigam o leitor a redobrar a sua atenção na apreensão da mensagem.
Se
nos questionarmos acerca da relação que se estabelece entre as personagens e o
espaço, constatamos que estamos perante a recriação de um ambiente opressivo
que reduz o ser humano à sua condição de animal, sendo este aspeto mais
dramático na condição das personagens femininas.
A
ação decorre durante a Idade Média e podemos evidenciar uma estrutura social
baseada na relação senhor – vassalo, em que a arbitrariedade do poder de um determina
a submissão do outro. A família de Baltazar Serapião, família de camponeses que
trabalha nas terras do senhor, é constituída por Afonso, o pai, pela mãe, cujo
nome nunca é revelado, e pelos seus irmãos Aldegundes e Brunilde, e mais tarde,
por Ermesinda, a esposa de Baltazar. A família tem como animal de estimação uma
vaca, a Sarga. A dedicação da família a este animal é tal que a família em vez
de ser conhecida pelo seu apelido, Serapião, antes são conhecidos pelos Sargas.
A relação entre os membros da família, à semelhança da estrutura social
dominante, baseia-se numa relação de domínio – submissão. As mulheres da casa
são encaradas como seres inferiores, é-lhes retirada a voz e num mundo ideal a
mulher deveria mesmo nascer muda, tal como podemos constatar nos seguintes excertos:
“uma mulher é ser de pouca fala, como se
quer, parideira e calada, explicava o meu pai, ajeitada nos atributos,
procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos
com os seus erros. (…) o mundo que as
mulheres imaginavam era torpe e falacioso, viam coisas e convenciam-se de
estupidez por opção (…) as mulheres eram perigosas,” (pp.21-22)
“a voz das mulheres só sabe ignorâncias
e erros, cada coisa de que se lembrem nem vale a pena que a digam. mais
completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao mundo mudas. só para
entenderem o que fazer na preparação da comida e debaixo de um homem e nada
mais.” (p.251)
Ao
longo do romance são retratadas as aventuras e desventuras de Baltazar Serapião
e o seu relacionamento com Ermesinda, sua esposa submissa e a mais bela das
raparigas das redondezas. Embora Baltazar se tenha casado com ela por amor, não
é possível falar de uma história de amor neste romance, porque esta mulher é vítima
de um sentimento de possessividade, de ciúme doentio por parte do protagonista, o
que claramente impede que o amor seja vivido na sua plenitude. Baltazar, o
narrador desta história, representa o homem que teima em dar continuidade a uma
herança cultural, que acredita que uma mulher deve ser “educada” com base no
terror e na violência. No caso de Ermesinda, os maus tratos sofridos levam à
extinção da sua beleza, à deformação física e, consequentemente, à sua morte. No final do romance, a
consciência da nocividade dos seus atos, traduzido no sentimento de remorsos,
faz com que a personagem Baltazar admita “a burrice e a ignorância de quem
abdicara da sua mulher”. A catársis ou a tomada de consciência revela-se
bastante tarde, no entanto, fica a lição para a geração seguinte.
E se o tema da violência doméstica, da
violação dos direitos das mulheres permanece ainda um assunto da atualidade,
tal faz-nos pensar que afinal a sociedade não evoluiu assim tanto, já que as grandes questões relacionadas com a dignidade humana continuam por resolver.
L.C., janeiro de 2013