O romance Predadores constitui uma crítica à ordem social,
económica e política de Angola, num período de tempo compreendido entre setembro
de 1974 e dezembro de 2004. Historicamente, corresponde ao período de pré- e pós-independência do país, enunciando os conflitos, as guerras e as
transformações sociais daí decorrentes.
O
narrador utiliza um discurso realista e, por vezes, irónico. Adopta uma focalização
omnisciente que lhe concede o pleno poder de contar a história da forma que bem
entende: recorre a avanços e recuos que quebram a linearidade do tempo e
obrigam o leitor a reforçar a sua atenção na apreensão da mensagem. Realce-se
ainda os apartes e intromissões do narrador, que surgem entre parênteses retos,
e que permitem, umas vezes, orientar o leitor na compreensão do enredo e noutras reforçar a
sua posição relativamente à sua função de narrador. De entre elas destaco esta,
que surge no início da narrativa, e que exorta o leitor para o seu papel de ouvinte:
“[Qualquer leitor
habituado a ler mais que um livro por década pensou neste momento, pronto, lá
vamos ter um flash-back para nos explicar de onde vem este Vladimiro Caposso e
como chegou até o que é hoje. Desenganem-se, haverá explicações, que remédio,
mas não agora, ainda tenho fôlego para mais umas páginas sem voltas atrás na
estória, a tentar a História. (…) Mais previno que haverá muitas misturas de
tempos, não nos ficaremos por este ano de 1992 em que houve as primeiras
eleições, iremos atrás e iremos à frente, mas só quando me apetecer e não quando
os leitores supuserem, pois democracias dessas de dar a palavra ao leitor já
fizeram muita gente ir para o inferno e muito livro para o cesto do lixo.]”
(p.13)
O
título do romance, Predadores, remete desde logo para
o retrato de um determinado grupo social, mais poderoso, que subjuga os seres
mais fracos e indefesos. Deste modo, nesta narrativa surgem personagens que
exemplificam os predadores, sendo que o principal é Vladimiro Caposso, que
podemos caracterizar como assassino, corrupto, arrogante, controlador, adúltero,
incompetente na gestão dos seus negócios e praticante de um capitalismo
selvagem.
Na
sua juventude, Vladimiro Caposso tinha trabalhado numa pequena loja, que
após a fuga do proprietário para Portugal, com a Independência do país, se
torna sua. Nesta altura, o jovem Vladimiro torna-se amigo de Sebastião Lopes e
ambos são membros do JMPLA. Vladimro torna-se um elemento-chave do movimento,
pela sua capacidade de organizar jogos de futebol. Mais tarde recebe uma
proposta de um dirigente para manipular informações sobre um outro membro do partido, em troca de uma posição mais priveligiada. O jovem acede ao pedido,
mas o prometido não é cumprido e é assim que Caposso se assume como um empresário,
ou seja, um capitalista:
“(…) tinha
de aceitar a ideia marxista das diferenças sociais baseadas em funções
económicas. (…) Portanto, havia classes e ele não pertencia ao proletariado,
nunca pertencera, pois até uma loja tivera. Era um pequeno-burguês e o sonho de
um pequeno-burguês é tornar-se um grande burguês, acumular capital, explorar o
povo (agora com minúscula) se preciso.” (pp.232-233)
“Que se
lixe a política, o partido e o marxismo! Quero é acumular fortuna e todos me
respeitarão, pedirão favores, por muito marxistas que sejam.” (p.233)
A
sua posição de capitalista vai crescendo e com ela a sua personalidade
desenvolve-se: torna-se corrupto quando usa as influências e a “gasosa” para
progredir nos seus negócios, que vão desde a organização de uma pequena empresa
de autocarros, à criação da CTC, uma empresa de construções, ao desvio de
dinheiro para contas bancárias em paraísos fiscais e ao comércio ilegal de
armas e diamantes. O dinheiro torna-se o seu “Deus” e, por isso, não olha a
meios para atingir os seus fins, elimina a concorrência, exibe as suas
excentricidades, como a casa de campo e o casamento milionário. No que se
refere à sua vida pessoal e familiar, embora casado, muitas vezes mantém relações
extraconjugais com raparigas jovens e controla os passos dos seus filhos. No
entanto, a incapacidade de rentabilizar os seus investimentos e as dívidas
acumuladas vão torná-lo mais frágil. Num determinado momento da narrativa e, tal
como o narrador indica, por mais que engorde um tubarão existem sempre outros
mais gordos ou mais fortes. A concorrência surge com dois investidores
estrangeiros: o americano Omar, que o narrador denominou o Cinzento e Karim, o
paquistanês.
Se Vladimiro Caposso representa o capitalismo
e consolida o título do romance, em oposição a este surgem duas personagens
dignas de referência - Nacib e Sebastião Lopes – que podemos considerar como
personagens com uma visão alternativa da emancipação social. Nacib é proveniente
de uma família pobre e sem recursos, mas com a sua inteligência e trabalho árduo torna-se engenheiro e exerce dignamente a sua profissão.
Por sua vez, Sebastião Lopes, antigo amigo de Caposso, torna-se
advogado e defensor de causas populares, tinha estado preso, mas os seus
ideais de justiça e de solidariedade mantiveram-se inalteráveis e, por essa razão
ganha o respeito e a gratidão dos mais humildes.
Vladimiro
Caposso tinha comprado uma extensa propriedade e nela construiu uma mansão
luxuosa e desviou o curso de um rio milenar para construir um lago e manter
pastagens verdejantes para alimentar o seu gado. No entanto, os mecanismos da
justiça seguiram os seus trâmites e Caposso é condenado por ter obstruído os
caminhos naturais da transumância e ter desviado o curso de água do rio,
deixando os agricultores locais desprovidos da sua subsistência. É devido a
este acontecimento que as duas personagens da mesma geração, mas com percursos
e ideais distintos, se confrontam e o verdadeiro Caposso é revelado:
[SL] “- (…)
O senhor, de jovem ingénuo e esperto, embora nada generoso nem desinteressado, passou
a ser um sobeta intratável, arrogante, montado num tesouro que muito
dificilmente poderá provar ser de proveniência honesta. Eu continuo com as
minhas ideias, junto do povo de que os dois saímos. É tão simples de entender…
[VC] –
Continuas então o mesmo comunista.
[SL] –
Nunca fui, não sabia muito bem o que isso era no fundo. Julgava ser e julgava
saber. Aliás, proclamava isso aos quatro ventos. Só mais tarde descobri, aquele
comunismo que eu seguia, aquelas ideias generosas de todos iguais e ninguém acima
do outro, não existia em nenhuma parte do mundo, era tudo uma tremenda mentira.
No entanto, as generosas ideias de solidariedade para com os outros, não
pretender explorar ninguém, lutar para que todos os angolanos tenham
oportunidades semelhantes na vida independentemente do que foram os pais, essas
ideias ainda são as minhas. Se isso é comunismo, tudo bem, assumo. Mas pode ter
a certeza, não é aquele que alguns pretenderam impor aos seus povos pela força.
Por isso não me ofende tratando-me por comunista.” (pp.338-339)”.
Do
exposto, podemos concluir que através do antagonismo que se estabelece entre
estas duas personagens estamos perante a discrepância de uma Angola sonhada e de uma Angola real. Apesar de neste romance surgir uma visão pessimista da sociedade
angolana, o final adivinha uma luz ao fundo do túnel. A denúncia social pode surtir algum efeito, como foi o caso de Caposso. Não podemos esquecer que, no final, Nacib encontrou a sua realização profissional e
num gesto de amizade e de solidariedade oferece um cheque ao amigo Kasseke para
este cuidar da sua saúde, é noite de Natal e não há guerra:
“Era noite de Natal,
terceira noite de Natal em paz. Não havia sons de tiros nem balas tracejantes
riscando o céu, não havia conversas sobre guerra.
Nunca mais?”
(pp.380)
Apesar da interrogação final suscitar algumas dúvidas, o final continua em aberto.