Deambulações


        Nesta página do meu blogue pretendo partilhar convosco as minhas criações literárias. Atribui-lhe o título de deambulações, porque estes não passam disso mesmo, de pequenos passeios pelo mundo das palavras.  

      A primeira deambulação que vos apresento fala simplesmente da Palavra.

Deambulação I
Parte I
A escritora nasce em mim...


         A escritora nasce em mim quando ao escrever desejo atingir a divindade, a universalidade, a verdade. Semeio, cultivo e amo com as palavras o que é belo, transfiguro-as em emoções, em sensações, em visões, em delírios. Desejo eternizar com a escrita o que é humano, mundano. Amo com as palavras o que não posso amar com os sentidos. Venero com as palavras o que sinto no mais íntimo do meu ser. Íntimas palavras que me tornam numa "sentidora", na escritora de todas as emoções. Amor. Ódio. Vingança. Veneração. Alegria. Tristeza. Dor. Prazer. Imortalidade.

Parte II

 Escrever para que a letra, a palavra não morra e se torne eterna. Escrever para recordar a grandeza e a pequenez do Homem. Escrever para esquecer que o tempo passa, esquecer que jamais viverei cada segundo irrepetível, cada momento que não passa de um momento. Escrever que o ser humano é efémero, transitório e impotente neste mundo regido por não sei o quê. Escrever para dar um pouco de mim a este mundo que não compreendo. Escrever porque o Amor pede que eu ame cada palavra. Escrever para justificar cada lágrima e cada suspiro de incerteza e de solidão. Escrever para ser um outro Eu que ainda desconheço. Escrever para expressar, modificar, provocar sentimentos, sensações e confusões numa mente que desconhece os limites. Escrever para amar as letras, as palavras, os textos, os romances, as memórias. Escrever porque sim. Escrever para amar esta vida de incertezas, ilusões, sonhos, fúrias, perdas, sacrifícios, mortes e efemeridades. Escrever para amar a impotência de ser eterna e dona do destino traçado. Escrever antes que o mundo acabe e não restem mais palavras, não reste mais papel, não reste mais nenhum olhar, mais nenhuma leitura da Palavra e do Mundo. Escrever, escrever... porque a palavra é arma, o poder na mão de quem a escreve, para depois a soltar e a deixar vaguear para atingir quem a lê, ouve e sente. A palavra escreve-se com os sentidos, vê-se, ouve-se, cheira-se, toca-se e sente-se. A palavra serve para amar, odiar, apaixonar, revoltar, morrer, transformar, modificar, indignar, questionar, esquecer, lembrar, eternizar. Tudo isto a Palavra.   


L.C.
Março 2003


Deambulação II

     As palavras permitem expressar emoções, sentimentos e permitem também eternizar a nossa mensagem quer ela seja de dor, de desencanto ou de gratidão.

Sem ti…


             A meu Pai...

            I.

Recordo o sorriso, a face tranquila e os olhos esverdeados de um homem simples que dizia, vivemos da ilusão, com a ilusão e para a ilusão, quando na minha ingenuidade te perguntava o que era a vida, cada um sabe da sua e mais ninguém, dizias. A vida, viveste-a de uma forma simples, ao ritmo da natureza, ao calor, ao vento, ao frio, à chuva, aceitando que ela traz nascimento, crescimento, doença e morte. Aceitáva-la tal como ela é, o que ela te dava e te tirava. Acreditavas num deus que olha por nós, mas que nem sempre compreendemos. Aceitavas o ser humano nas suas virtudes e defeitos, tal como um pai criador que sabe que cada ser tem um caminho diferente a percorrer e que ninguém pode impedir a dor, o sofrimento, a alegria, a tristeza, o engano, a ilusão, o sonho. Por vezes, sentias que estavas a chegar ao fim da tua caminhada e dizias que a tua partida se aproximava, eu dizia-te há flores em todas as estações e loucura em todas as idades, Pai, mas tu sabias que a terra clamava por ti, a terra que cultivaste e retiraste alimento com as tuas mãos.

Partiste num dia quente de Verão quando toda a natureza se cobre pelas sombras negras da noite e adormece. Levastes junto a ti a solidão e o silêncio, assim como a resignação de quem não tem outra solução senão aceitar a partida. Não sei para aonde fostes, mas sei que levastes a todos nós no teu coração, bem como a natureza que sempre amaste. Ficámos vazios de ti, tal como a noite fica vazia da luz do sol. A casa agora desabitada de ti, sombria, suspira dor. A noite tomou conta das nossas vidas, tal como a terra escura tomou conta do teu corpo.

II.

Ficou a lembrança e a grandeza do homem que foste. Ficou a saudade e o luto na alma. Um vazio de ti. Ficou a vontade de eternizar o teu nome e a tua obra, como se fosses um deus entre os homens.
Em mim ficaram os teus ideais e a tua filosofia de vida. Viver na simplicidade, com a verdade, com os nossos sentimentos e com os dos outros. Aceitar que somos imperfeitos, mas que somos como somos. Somos o produto das nossas vivências, escolhas, emoções, sentimentos e ressentimentos. O homem sonha para se sentir vivo, concebe, persegue e vive a ilusão. A crença num deus invisível, que determina parte do nosso destino de tristeza, solidão e morte. A certeza de que se deve amar a terra e os homens, perdoar, aceitar, retribuir. Abdicar do que não podemos ter, aceitar as nossas limitações, mas amar sempre, e nunca odiar, amar nem que seja o último suspiro de vida. Aceitar as perdas e aprender a suportar a saudade e a ausência. Construir a vida, nunca destruir.
Recordo-te como um Deus que me concebeu. Me viu crescer e amadurecer. Não te vi chegar a velhinho avô, Pai, com as faces enrugadas, antes vi um corpo consumido pela fome e pela crueldade da doença, do sofrimento... e da morte. Tu ficaste em cada pedaço de terra, em cada flor, em cada canto da casa, na memória de cada um que te amava. Ficou o teu retrato de homem vistoso e saudável, de ar sereno, confiante, feliz por estar vivo. Ficou em mim a imagem de um pai dedicado, compreensivo, simpático, corajoso e amigo. Quero recordar-te como um ser belo, cheio de vida, para que as minhas lembranças de ti, não sejam de dor e de sofrimento, mas de gratidão e de esperança.

        III.

        O Alentejo, a tua terra de nascença, é a minha terra também. Trago no olhar a planície infinita, triste, melancólica, solitária. O Alentejo é terra de solidão, de tristeza, de dor, de desalento, de perda, de sofrimento, de morte e de repouso. Nesta terra passei a infância inocente e a adolescência incrédula. Fui conhecer outras terras por isso agora me é duro regressar a esta terra despida de ti. A esta terra de memória da tua presença, da tua graciosidade, da tua pureza, da tua lealdade. A esta terra em que a Natureza dita a lei da vida e da morte, o destino de cada ser que a habita. O Homem nesta terra é calmo, mas ama a terra, porque a trabalha e a faz dar fruto. A terra é alimento, dela se vive, nela se vive, nela se faz o pão, nela o corpo de decompõe e é assim que todos nós fazemos parte dela. O que ela nos dá, também nos tira. É duro contemplar esta terra cruel e não te ver a percorrer os campos de trigo, a pastar o gado, a semear a terra, a regar a terra, a colher os cereais e os frutos, a tosquiar as ovelhas, a arranjar badalhos e chocalhos. É duro viver sem ti, Pai. É duro ouvir o som da terra sem ouvir a tua voz. É dura esta saudade do tempo que não volta. É duro saber que a minha infância não retorna e que já não me ensinas a fazer contas. É duro percorrer os campos com o gado, e não ter a tua companhia. É duro saber que as nossas conversas sobre Deus e os Homens já não vão existir. É duro não te ter perto. É duro te ter visto morrer a cada dor, a cada avanço da doença, a cada momento que se aproximava de ser o derradeiro. Pai, é  dura a ausência e a solidão.  

L.C.
Agosto de 2004


imagem retirada de lmrap-momentosdepoesia.blogspot.com

Deambulação III

Palavra Indignação

Erguem-se sombras que impelem a morte
Ergue-se o fogo que arde nas veias
Não chega a salvação a este mundo cruel
De violência, ira, falsidade.

Erguem-se nuvens negras iradas
Destroços de máquinas amaldiçoadas
Homem cruel que não sabe o que faz!

Almas penadas gritam no Inferno
Que afinal é na Terra!
Visão dantesca do Planeta Azul Negro
Visão das facada nas costas
Das vozes revoltadas
Dos homens cruéis.

Ergue-se o Dia Escuro que não acaba
O Sol não nasce na terra das trevas
Homem Superior, cala esta ira
Homem Imperfeito, descobre a tua verdade.

Homem Superior, brilhe o sol nesta terra violenta
Seja a dor transformada em paixão
Seja a ganância transformada em solidariedade
Seja o rancor transformado em perdão.

L. C., 2005.




1 comentário:

  1. Lúcia, já vi e li alguns dos teus belíssimos textos! Fiquei sem respiração. Tu escreves mesmo muito bem, rapariga! Eu já te tinha lido, enquanto minha aluna, mas agora, a tua escrita está segura, mais emotiva e muito expressiva. São textos da tua alma grande. Adorei. Estes dedicados ao teu pai são de uma enorme sensibilidade e saudade, ao ponto de contagiarem o leitor. Também nós ficamos venerando esse homem extraordinário que tu viveste no teu pai. Os poemas são belos, muito belos e de mensagens gritantes. O texto em que estás à espera do arranjo do teu carro podia estar num jornal, numa revista; é uma crónica do quotidiano urbano. Lindo.
    Tenho muito orgulho em ti. Linda menina! Deves continuar e quem sabe escrever contos ou algo mais... para publicar.
    Manda para uma editora. Pode ser que gostem, tal como eu gostei. Experimenta.
    Jinhos no teu coração!

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